Em recente entrevista à Globo News, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello fez um alerta contundente: o STF tem extrapolado suas funções constitucionais ao julgar, diretamente, cidadãos comuns — o que deveria ser atribuição da primeira instância. Suas palavras ecoam a crescente preocupação de juristas, parlamentares e cidadãos sobre os rumos da Corte. O problema não é apenas técnico: trata-se de um desvio perigoso que ameaça o equilíbrio entre os Poderes e os direitos fundamentais de todos os brasileiros.
Ao assumir competências que não lhe foram atribuídas pelo texto constitucional, o STF avança sobre funções do Legislativo, ignora garantias processuais e enfraquece o sistema acusatório. É hora de questionarmos: o Supremo ainda age como guardião da Constituição ou tornou-se um poder à parte?
O STF e a Tacada Única: Julgamento Sem Recurso é Justiça?
O Supremo, criado para julgar questões constitucionais e autoridades com foro privilegiado, passou a julgar cidadãos sem prerrogativa de foro, sem o duplo grau de jurisdição — o direito a um recurso. Isso fere o devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.
O caso do habeas corpus 152.752, julgado em 2018, reforça a própria jurisprudência da Corte no sentido de que o réu deve ter direito à ampla defesa, contraditório e recursos adequados antes de cumprir pena. O entendimento consolidado por anos garante que ninguém seja punido sem que sua condenação seja revista por instância superior.
Mas agora, ao julgar diretamente cidadãos — muitas vezes com base em inquéritos sigilosos e sem denúncia formal — o STF aplica uma “tacada única”: condena sem chance de revisão. Isso equivale a transformar a Corte em tribunal de exceção, prática incompatível com regimes democráticos.
Alexandre de Moraes: Vítima e Juiz?
Outro ponto alarmante é a atuação do ministro Alexandre de Moraes, relator de inquéritos como o das fake news e o dos atos antidemocráticos. O problema não é apenas jurídico, é ético: ele atua como vítima, investigador e julgador.
O princípio “nemo judex in causa sua” (ninguém pode ser juiz da própria causa) é basilar em qualquer sistema de Justiça. Ignorá-lo é subverter séculos de evolução do direito. Em comparação, no Caso Pinochet, em 1999, o então juiz da Câmara dos Lordes britânica, Lord Hoffmann, foi afastado por manter vínculo com uma ONG ligada a vítimas do regime chileno — não havia interesse direto, mas apenas aparência de parcialidade.
No Brasil, mesmo diante de reiteradas críticas e petições de suspeição, o ministro Moraes segue à frente de processos nos quais figura como parte ofendida. Isso compromete a imparcialidade do julgamento e mina a confiança da sociedade na Justiça.
Anistia e Lava Jato: O STF Contra o Congresso?
A Constituição é clara: anistiar é prerrogativa exclusiva do Congresso Nacional, conforme o artigo 48, inciso VIII. Isso não impediu o STF de interferir, direta e indiretamente, em debates legislativos sobre o tema.
No julgamento da ADPF 709, o Supremo impôs limitações à atuação do Executivo e do Legislativo em matérias como o combate à COVID-19 entre povos indígenas, numa decisão que, embora bem-intencionada, extrapolou os limites da função judicante. O mesmo padrão se repete quando ministros tentam barrar discussões legislativas sobre anistia a manifestantes presos por crimes não violentos.
A interferência da Corte em atos soberanos do Legislativo revela uma inversão de papéis: o Judiciário, que deveria interpretar a Constituição, acaba por se tornar legislador negativo — decidindo o que pode ou não ser debatido no Parlamento. Isso é politização, não jurisdição.
Como Outros Países Protegem a Democracia
Nos Estados Unidos, mesmo crimes federais são julgados por júris populares e passam por múltiplas instâncias. Nenhum juiz da Suprema Corte investiga, acusa e julga simultaneamente. Há limites rígidos entre as funções dos Poderes e respeito irrestrito às garantias do réu.
Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal possui atribuições claramente definidas: ele apenas julga a constitucionalidade de leis ou atos normativos. Não interfere em processos penais ordinários nem se envolve em disputas políticas que cabem ao Parlamento. A estrutura jurídica alemã é um exemplo de como limitar o poder das cortes sem enfraquecer a Justiça.
O Brasil, ao concentrar poder no STF sem prever controles efetivos — como mandatos, colegiado externo ou cláusulas de impedimento automático — abre espaço para abusos e autoritarismo judicial.
Conclusão: Quando o Supremo se Arvora em Poder Absoluto
A democracia é feita de freios e contrapesos. Quando uma Corte concentra funções que deveriam ser repartidas entre juízes de primeira instância, Ministério Público e Parlamento, ela deixa de ser tribunal e se torna instrumento de poder.
O STF, ao julgar cidadãos comuns sem recurso, investigar opositores e decidir sobre temas políticos fora de sua competência, repete erros históricos de cortes que foram capturadas por interesses de ocasião. Na Venezuela, o Supremo tornou-se braço do regime chavista. Na Polônia, reformas judiciais centralizadoras minaram a confiança na Justiça. O Brasil não está imune.
Como alertou o próprio ministro Gilmar Mendes em outras ocasiões: “O STF não pode ser a última trincheira da política. Quando isso acontece, é a própria Corte que perde.”
A defesa da democracia passa pela defesa dos limites. E nenhum poder, por mais iluminado que se ache, está acima da Constituição.
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