Em abril de 2025, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) denunciou publicamente que teve seu gênero registrado como “masculino” no visto diplomático emitido pelos Estados Unidos, contrariando sua identidade de gênero reconhecida oficialmente pelo Estado brasileiro. Em declaração, Hilton afirmou: “meu passaporte está como mulher, meu registro civil está como mulher, e mesmo assim os Estados Unidos me deram um visto diplomático como homem”. O caso traz à tona questões relevantes sobre o reconhecimento internacional de identidades de gênero e as tensões que podem surgir em função de normativas divergentes entre Estados soberanos.
O problema central reside na incompatibilidade entre documentos oficiais emitidos por Estados com diferentes normativas legais sobre identidade de gênero. Essa incompatibilidade pode comprometer tanto a dignidade individual de autoridades com identidade de gênero diversa quanto gerar constrangimentos diplomáticos, especialmente em contextos oficiais como missões internacionais, eventos multilaterais e relações bilaterais sensíveis.
Políticas de Gênero Comparadas: Estados Unidos, Brasil e Reino Unido
O caso deve ser compreendido à luz das políticas internas de cada país em relação ao reconhecimento de identidade de gênero. O Brasil possui um arcabouço normativo progressivo nessa matéria. A decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275/2018 permitiu que pessoas trans atualizassem o registro civil sem necessidade de cirurgia ou laudos médicos, com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Em 2019, a Lei 14.004, conhecida como Lei João W. Nery, foi proposta para consolidar direitos da população transgênro, embora ainda não tenha sido plenamente regulamentada.
Nos Estados Unidos, observa-se uma crescente polarização normativa em torno da identidade de gênero. Em 2023, durante o governo Donald Trump, foi assinada uma ordem executiva intitulada “Defending Biological Truth in Government Records” (Defesa da Verdade Biológica nos Registros Governamentais). Esta ordem estabelece que, para fins de registros oficiais federais, o sexo deve ser registrado com base em características biológicas imutáveis, salvo exceções definidas por agências reguladoras. Essa diretriz impacta diretamente a emissão de documentos como vistos e passaportes, mesmo em casos diplomáticos.
No Reino Unido, o reconhecimento legal da identidade de gênero está sujeito à Gender Recognition Act de 2004. No entanto, uma decisão recente da Suprema Corte britânica, mencionada por Erika Hilton em sua fala, reforçou que “o reconhecimento legal do gênero não obriga instituições a ignorarem distinções biológicas em situações específicas”. Essa jurisprudência tem sido utilizada como referência por países com legislação conservadora para justificar restrições administrativas a pessoas trans.
Análise Diplomática: Impactos e Posição do Itamaraty
Do ponto de vista das relações bilaterais, o caso insere-se num momento de retomada do diálogo diplomático entre Brasil e Estados Unidos, especialmente em temas de direitos humanos e cooperação multilateral. A divergência na classificação de gênero em documentos diplomáticos pode ser interpretada como um obstáculo burocrático, mas também como um sinal de desalinhamento em valores fundamentais.
O Itamaraty, até o momento da redação deste artigo, não emitiu nota oficial sobre o caso. Em situações similares, a prática diplomática tem sido pautada pela nota verbal, instrumento pelo qual um país comunica formalmente a outro sua insatisfação com determinada conduta. A ausência de posicionamento público pode indicar a intenção de resolver a questão por via discricional, sem escalar o problema ao âmbito público.
Outro ponto de análise relevante é a prerrogativa dos Estados em estabelecer seus próprios critérios para documentos migratórios e diplomáticos. Conforme a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961), é direito do Estado receptor aceitar ou não determinada pessoa como parte de uma missão diplomática. No entanto, divergências dessa natureza têm o potencial de gerar desconfortos institucionais, particularmente em relação à imagem internacional do Estado brasileiro.
Conclusão
O caso da deputada Erika Hilton evidencia os limites da cooperação diplomática diante de normativas internas conflitantes sobre identidade de gênero. Embora os países mantenham soberania sobre seus sistemas administrativos, situações como essa desafiam os mecanismos de padronização e reconhecimento recíproco no direito internacional.
A ausência de um protocolo multilateral sobre reconhecimento de identidade de gênero em documentos oficiais expõe vulnerabilidades para agentes públicos transgênro em atividades internacionais. Perguntas relevantes emergem para o debate acadêmico: é possível compatibilizar o respeito à identidade de gênero com a soberania documental dos Estados? Quais seriam os limites da reciprocidade diplomática diante de valores constitucionais divergentes? E, sobretudo, como prevenir que questões administrativas se convertam em impasses diplomáticos com impacto sobre a cooperação internacional em direitos humanos?